De empresa falida, a Santa Catarina passou a ser o maior empregador na ilha de São Jorge. Além das conservas gourmet, onde apostou, produz agora uma marca exclusiva para o Lidl e quer continuar a crescer.
Olhando para o céu, é difícil dizer com certeza o dia que aí vem. Cai uma chuva miudinha, mas não tarda o sol pode aparecer e, do outro lado do canal, o Pico dar o ar da sua graça. É incerto o Verão na ilha de São Jorge. Também a história da fábrica de conservas Santa Catarina foi marcada pela incerteza até que, depois da falência em 2009, o Governo Regional pegou na empresa. Desde então, o atum Santa Catarina tem vindo a afirmar-se, em Portugal e no estrangeiro, aproveitando a onda de revivalismo relacionado com as conservas e beneficiando do novo fôlego dado ao turismo na região dos Açores.
Numa ilha conhecida pela sua produção de leite e queijo e onde as mulheres tradicionalmente não trabalham fora de casa, a Santa Catarina é o principal empregador de São Jorge, absorvendo 11% dos trabalhadores por conta de outrem. É na sua maioria mão-de-obra feminina, que dificilmente encontraria trabalho remunerado noutra área.
A importância para a economia local e para fixar pessoas na ilha (que tem cerca de 8500 habitantes) foram, de resto, as principais razões que levaram o governo regional a comprar a fábrica por um euro e a transformá-la numa empresa de capitais públicos. Já antes, em 1994, a câmara da Calheta - vila onde se situa a conserveira - tinha feito o mesmo, quando a fábrica da Sociedade Corretora que ali existia desde a década de 40 fechou as portas.
O segredo do caminho que tem vindo a ser feito de 2010 em diante, conta Rogério Veiros, presidente do conselho de administração da conserveira, é “a qualidade” e “a capacidade de acrescentar valor ao produto”. “Fomos pioneiros a adicionar sabores ao atum”, exemplifica, acrescentando que o principal passo para o desenvolvimento do negócio foi dado com a certificação da qualidade.
Crescimento certificado
À porta da fábrica, que se situa mesmo à beira-mar, alinham-se várias bandeiras. Há uma que deixa Rogério Veiros particularmente orgulhoso: a que indica a certificação pela norma FSSC 22000.
Foi graças à parceria com o Lidl - que se iniciou em 2010 e que em 2015 representou 32% facturação da conserveira - que esta certificação acabou por acontecer. Anteriores administrações foram adiando o processo, mas a actual acabou por reconhecer que era um passo importante para posicionar a conserveira no ranking das melhores e, ao mesmo tempo, garantir a presença das suas conservas na grande distribuição.
O processo de certificação – que implicou um investimento de meio milhão de euros - não foi fácil. “Foi preciso explicar às trabalhadoras por que razão era importante a bata ficar na empresa para ser lavada ou calçarem sapatos adequados”, explica o presidente do conselho de administração. A população da Calheta também não aceitou de ânimo leve que a empresa passasse a ter uma vedação e um portão. “Fechar as portas da fábrica foi visto com estranheza pelos jorgenses”, que estavam habituados a que a conserveira fosse “sua”.
Apesar das resistências iniciais, o selo de qualidade é uma realidade e é graças a ele que a Santa Catarina (que antes já fornecia perto de 20% das conservas de atum para a marca própria da cadeia de distribuição alemã) passou a fabricar uma marca exclusiva para o Lidl, o Bela Aurora, que desde o início de Junho está nas prateleiras e será a marca de primeiro preço (a mais barata) dos supermercados em Portugal. Com uma diferença em relação à concorrência: o peixe usado vem dos Açores. Este ano, a Santa Catarina será responsável por fornecer 40% da marca própria (que inclui também as marcas exclusivas comercializadas apenas nas lojas Lidl).
Numa empresa que vive essencialmente das exportações – em 2015, 45% da produção foi escoada para os mercados italiano, inglês e americano – esta parceria vem dar dimensão e um novo fôlego à produção. Nos planos está a possibilidade de incluir a linha gourmet das conservas Santa Catarina na lista de produtos nacionais exportados pelo Lidl para outros supermercados do grupo. Uma estratégia semelhante à que já é seguida para a pêra Rocha ou para o vinho. Também a melancia, o melão branco, as framboesas e as amoras produzidas em Portugal têm vindo a ganhar peso nas exportações da cadeia alemã.
O sector conserveiro nos Açores resume-se a cinco fábricas. Duas são da Cofaco (dona do atum Bom Petisco e que tem fábricas no Pico e em São Miguel), uma da Santa Catarina (em São Jorge), outra da Sociedade Corretora (fundada no início do século XX em São Miguel, onde mantém uma fábrica, é a mais antiga) e uma da Pescatum (situada na Terceira). A Santa Catarina, que no ano passado facturou seis milhões de euros, é a segunda mais importante e o objectivo é crescer 20% este ano.
No pulmão da fábrica
Na Santa Catarina trabalham-se diariamente 8,5 toneladas de atum. Usa-se preferencialmente a espécie bonito, que não tem quota ao nível mundial e é pescado entre a Madeira e os Açores. Cada peixe não vai muito além dos 50/60 centímetros.
Na sala do bosque (nome que vem das antigas fábricas onde se trabalhava peixe de grandes dimensões, que eram pendurados no tecto, fazendo lembrar uma floresta) uma mulher lava e cozinha os atuns, dispostos em redes. Os peixes que estão agora a ser colocados nas grandes panelas rectangulares, com a ajuda de uma grua, vão ser cozidos durante 40 minutos.
“Na Santa Catarina não usamos lombos pré-preparados. Todo o peixe é cozinhado e temperado por nós e o tempo de cozedura é controlado por nós”, explica Rogério Veiros.
Depois do peixe ser cozido, é a Susana Silva que cabe distribuir o trabalho às cerca de 100 mulheres que se alinham nos 90 metros quadrados da sala da limpeza, escolha e enlatamento.
Aos 30 anos, Susana é a mestra da Santa Catarina. Antes, esse papel era desempenhado por uma mulher mais velha, mas a direcção decidiu apostar numa pessoa mais jovem. “Inicialmente as pessoas ficavam pouco à vontade e estranhavam. Mas sinto que gostam de mim”, diz com um ar sorridente.
A função da mestra é fundamental. É ela que distribui os lotes de peixe pelas trabalhadoras, verifica se atum é aproveitado ao máximo e a qualidade dos filetes. É também ela que resolve os conflitos que surgem. Num meio pequeno como a Calheta (que tem à volta de 3500 habitantes) facilmente os problemas são levados para a fábrica.
Susana está na empresa há três anos. Veio pedir emprego numa sexta e na segunda já estava a trabalhar. Reconhece que se não fosse a Santa Catarina, a maior parte das mulheres não tinha emprego.
Pedro Pessanha, director de produção, destaca o papel fundamental da conserveira para a economia da ilha. “Muitas televisões e frigoríficos foram comprados com o salário ganho na Santa Catarina”, exemplifica.
Dentro da fábrica está calor e um cheiro intenso. Após a cozedura em água e sal, o peixe é amanhado à mão e dividido em filetes e lombos. O atum é disposto manualmente em cada lata ou frasco com cuidado redobrado, para os filetes não se desmancharem. Só os pedacinhos que resultam deste processo são enlatados com a ajuda de uma máquina, para fazer o atum corrente.
“O pulmão da indústria é a mulher, a faca e o peixe. Não há máquina nenhuma que possa substituir isso”, diz o director de produção, Pedro Pessanha, que trabalha no sector há quase duas décadas e é neto do impulsionador da Cofaco nos Açores.
Dar novos sabores ao atum
Na sala das especialidades prepara-se a “jóia da coroa” da Santa Catarina, as conservas com sabores. O atum com pimenta dos Açores, com funcho, com tomilho ou majericão já valeu vários prémios à empresa e é com estas especialidades que pretendem brilhar nas lojas Lidl de toda a Europa.
“- Hoje cheira a quê?”, pergunta Rogério Veiros logo que entra na pequena sala.
“- A poejo!”, respondem as três mulheres que ali trabalham.
Dentro das latas colocam uma pequena quantidade de ervas aromáticas e depois dispõem cuidadosamente os filetes. Depois de pronta, cada lata é embrulhada à mão, num papel que pretende imitar as páginas de um jornal e onde se sugere uma receita.
“Tentamos aproveitar toda a história da indústria conserveira nos Açores e dar novos sabores ao atum. É a forma de a indústria tirar proveito deste revivalismo associado às conservas”, explica Pedro Pessanha.
A linha gourmet foi lançada em 2010 e a aposta parece estar a ser ganha. No primeiro ano permitiu facturar 40 mil euros, valor que passou para os 800 mil euros em 2015.
Além do interesse crescente nas conservas, há também o turismo que, no último ano, disparou nos Açores com o início dos voos low cost para a região insular. Foi precisamente para aproveitar este impulso que a Santa Catarina reformulou a imagem de uma outra marca que detém, o Bonito dos Açores.
O produto foi retirado das prateleiras dos supermercados para ser reformulado e voltou este ano com nova cara e um conteúdo de topo. “O produto tinha uma imagem pouco apelativa e dava pouco destaque à palavra Açores. Criámos uma nova imagem e candidatámo-nos a produto da marca Açores, posicionando-nos num outro patamar de qualidade e também de preço”, diz Rogério Veiros.
O futuro, reconhece o responsável da Santa Catarina, terá de passar sempre pela diferenciação, mas para isso é preciso manter uma linha de produção contínua, algo que só é possível por causa da parceria com o Lidl.
Fonte: Público
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